ESTADOS DE CONSCIÊNCIA E ATIVIDADES LÚDICAS


 

Cipriano Carlos Luckesi


 

A presente Coletânea trata do tema --- "Ludicidade: onde ela acontece?"---, todavia, mais do que escrever sobre os espaços onde a ludicidade acontece, tenho o desejo de aprofundar um assunto ao qual venho dando forma em artigos publicados nas coletâneas anteriores do GEPEL ou seja, a compreensão das atividades lúdicas. Neste texto, proponho-me abordar a questão de "como as atividades lúdicas atuam e como podem atuar em nossa experiência", de tal forma que elas subsidiem o nosso autodesenvolvimento.

Em texto publicado na Coletânea 01, tive oportunidade de expor a compreensão de que as atividades lúdicas propiciam "experiências plenas" a quem as pratica; mais à frente, na Coletânea 02, procurei clarear um pouco mais o que eu afirmava ao propor essa definição para as atividades lúdicas e, então, mostrei que essa afirmação tinha a ver com a experiência interna do sujeito que vivenciava uma ou várias atividades lúdicas. Agora, volto ao mesmo tema, porém, neste momento, explicitando o ato de consciência que está implicado na prática das atividades lúdicas.

Vou trabalhar com o tema "como os atos de consciência operam nas atividades lúdicas" e, para tanto, vou dar atenção à dialética entre os atos de consciência focada e ampliada. Nós, seres humanos, necessitamos de nos movermos com esses dois pólos do ato de consciência; a fixação em um deles traz distúrbios e impedimentos.

1. A dialética entre os atos de consciência focado e ampliado

Não sei se é verdade, mas diz-se que certa vez foi perguntado a Werner Heisemberg --- cientista dos mais importantes da contemporaneidade no campo da Física --- qual era o oposto de "clareza", ao que ele respondeu, de imediato: "O oposto da clareza é a exatidão". Fiquei, de início, um tanto incomodado com essa resposta do pesquisador. Porém, com algum tempo de reflexão, terminei por compreender o que ele dizia.

A essa pergunta, de imediato, eu responderia que o oposto da exatidão é a confusão, ou seja, a inexistência de contornos; e eu chegaria mesmo a dizer que a clareza é uma conseqüência da exatidão. Acredito que para muitas outras pessoas também viria de dentro de si resposta semelhante e essa mesma sensação de estranheza. A resposta dele soa estranha aos nossos ouvidos e ressoa estranha aos nossos entendimentos cotidianos sobre "clareza" e "exatidão".

Todavia, aprofundando um pouco nossa compreensão, podemos chegar a um entendimento relativamente adequado do que possivelmente Heisemberg teria expresso com sua resposta, o que nos ajuda a compreender o modo como atuam as atividades lúdicas em nosso desenvolvimento.

Extrapolando a compreensão comum e precisando a conotação dos termos utilizados por Heisemberg --- exatidão e clareza ---,vamos chegar à compreensão que se segue: "exatidão" é um conceito que traz dentro de si a idéia de precisão, de limite bem definido, separando o que se considera certo e o que se considera errado; "clareza", por seu turno, expressa uma compreensão a partir da abertura para múltiplas, se não, infinitas possibilidades; aqui não se está centrado no "certo ou no errado", mas sim nas possibilidades, que são muitas para além dessas duas. No contexto da clareza, não há um modo único, certo, definitivo e exclusivo de olhar, entender, agir; a clareza não necessariamente está assentada na certeza a partir deste ou daquele critério; ela propicia uma percepção ampla da situação, estando presente a complexidade de variáveis, o que possibilita uma escolha e uma decisão mais adequada. A clareza propicia possibilidades de olhar e "ver" a partir de um todo e das múltiplas interações que estão presentes numa situação. Do ponto de vista da Física Quântica, metaforicamente, poderíamos dizer que a clareza está comprometida com as possibilidades, onde tudo cabe e tudo é possível; a exatidão tem a ver com uma única possibilidade "precipitada", atualizada, configurada, definida.

Uma decisão tomada a partir da exatidão poderá ser certa, mas, não necessariamente, a mais adequada; uma decisão tomada a partir da clareza certamente que será a mais adequada, certamente a mais sábia, mas não necessariamente a mais certa, do ponto de vista analítico.

Entre exatidão e clareza interpõe-se um espaço, ao mesmo tempo psicológico e epistemológico, que aqui definimos como processo de "ampliação da consciência". A ampliação da consciência tem a ver com a possibilidade de ser inclusivo.

A exatidão exige a exclusão, na medida em que busca o certo e este depende da exclusão de fatores intervenientes, que possivelmente obscurecem o seu contorno; ela exclui tudo que não esteja dentro do círculo da identidade de alguma coisa consigo mesma, por isso, tem como seu fundamento os princípios da lógica formal, que são: o princípio da identidade (neste momento e neste lugar, A é igual a A); o princípio da não contradição (neste momento e neste lugar, A não pode ser não-A; ou seja, não pode ser e não-ser, ao mesmo tempo); e, por último, o princípio do terceiro excluído (neste momento e neste lugar, entre A e não-A, não existe outra possibilidade). Para que a exatidão se dê, torna-se necessária a exclusão de todos os elementos que não caiam dentro do contorno da definição. A exatidão exige contornos estritamente configurados daquilo que se define.

Do ponto de vista da ciência, no sentido estrito da epistemologia moderna, cujas fontes originárias são, no mínimo, experiências empíricas, e, no máximo, racionais, a exatidão é um ato mental necessário. Só ela garante a segurança da validade do conhecimento, assim como de sua previsibilidade de alguma coisa e, por isso mesmo, sua aplicabilidade.

Do ponto de vista da experiência humana em geral, a orientação da vida exclusivamente pela exatidão apresenta-se restritiva, fragmentária, engessadora. A vida humana exige um movimento dialético entre a exatidão e clareza, ou seja, entre o ato mental que exclui, tendo em vista obter precisão, e o ato mental que inclui, tendo em vista estabelecer uma percepção abrangente das possibilidades, o que implica vivenciar a riqueza das possibilidades, que são infinitas.

O exercício das atividades práticas do dia a dia exige a exatidão. Por exemplo, não posso dirigir carro na rua com a consciência ampliada; necessito de estar bem ciente do que estou fazendo, dirigindo pela mão direita, no espaço devido, sem abalroar os outros carros, assim como as pessoas que estão na rua ou nas calçadas. Aí, todos os atos necessitam de ser precisos. Mas, por outro lado, suponhamos que necessito de tomar uma decisão diante de um guarda de trânsito, que está, com um apito, a me mandar prosseguir no tráfego, enquanto existem pedestres desavisados atravessando a rua. Se não obedeço o guarda, sou multado por desobediência; se avanço, posso acidentar uma pessoa. Nesta circunstância, só a clareza (diante das possibilidades) me permite decidir por qual ação praticar. Mas, tomada a decisão, novamente, a precisão me colocará em ação e, então, de novo, funciona a exatidão. Há uma dialética entre o uso da clareza e da exatidão. A clareza exige uma experiência da consciência ampliada e a exatidão exige uma experiência de consciência focada.

Psicologicamente, podemos dizer que a "consciência ampliada" é um ato mental, no seio do qual não há exclusão e, por isso, permite a clareza, devido incluir as possibilidades. Vamos exemplificar. Um filho está com raiva do pai, devido este ter tido uma conduta que o desagradou, mas o que o filho queria mesmo era ter o amor do pai e, por isso, amá-lo e não estar enraivecido contra ele. Do ponto de vista da exatidão, ele está certo: o pai o ofendeu, por isso ele desenvolveu uma raiva contra o pai; do ponto de vista da clareza, se, o filho se afastar um pouco da situação, ampliando a sua consciência, observará que não foi tão trágico assim o que o pai fez, e, por isso, vale a pena deixar o amor chegar, substituindo a raiva. O mesmo vale para o pai e, só assim, ele poderá chegar junto do filho e restabelecer a relação amorosa entre eles.

Se ambos permanecerem dominados pelo ato mental da exatidão, ambos terão razão --- o pai ofendeu indevidamente o filho e o filho tem direito de descontar no pai --- e não mais restabelecerão uma relação harmoniosa entre eles e, assim, levarão pelos seus dias a fora a certeza de que ambos "estão certos" e que "não darão o braço a torcer". Mas, se um dos dois abrir mão da exatidão e olhar para o outro, através de um ato mental de consciência ampliada, encontrará a possibilidade de incluir o outro e, por isso, a clareza é, neste caso, a possibilidade de restabelecer a relação harmoniosa e saudável.

O que dá suporte ao desenvolvimento saudável e o que "cura" as dores, as feridas, as marcas do passado, os turbilhões emocionais desvairados, os enredamentos afetivos inconscientes, as fixações traumáticas e repetitivas é a ampliação da consciência, tendo em vista ter a possibilidade de olhar nossos atos de um ângulo mais amplo, onde tudo pode ser incluído. É um lugar epistemológico de onde se olha para a vida, sem os antolhos do bem e do mal, do certo do errado, do "eu tenho razão, você não". No espaço da consciência ampliada, tudo é harmônico e, de lá, a harmonia se corporifica no cotidiano, através dos atos práticos, que se utilizam da exatidão.

Enquanto nós olhamos o mundo exclusivamente a partir de um estado de consciência focado, tudo o que está dentro de nós e a nossa volta é julgado pela ótica do certo ou do errado, do exato ou do inexato; porém, se olharmos o mundo exclusivamente a partir de um estado ampliado de consciência, nossas ações não terão conseqüências práticas. Por isso, faz-se necessária a dialética entre os estados ampliados e focados da consciência. O primeiro possibilita a escolha mais adequada e o segundo permite a eficiência no agir.

Contudo, importa observar que na prática da pesquisa científica e filosófica, assim como na criação artística e literária, se se é permitida a verdadeira criatividade, essa mesma dialética também é necessária e está presente. Os cientistas, os filósofos, os artistas e os literatos que só operem com a exatidão permanecerão no limite de comentadores ou explicitadores das teorias existentes, copistas e recenseadores de obras, mas nunca verdadeiros cientistas, filósofos, artistas e literatos. Não se faz criação científica, filosófica, artística ou literária a partir da exatidão, mas sim a partir das infinitas possibilidades. O acesso a conhecimentos novos e a novas possibilidades de criação não emergem do olhar restritivo, mas sim do olhar e da percepção ampliada. Sem a ampliação da consciência, os focos e as compreensões da ciência, da filosofia, da arte e da literatura permaneceriam indefinidamente limitadas e restritas.

Porém, por outro lado, a operacionalização e materialização das intuições criativas não se farão sem que nos sirvamos da consciência focada. As intuições, muitas vezes, levam meses ou anos, para ganhar sua forma configurada, estruturada, materializada. A fórmula de Einstein --- E=mc2 --- é uma intuição; transformá-la em uma demonstração matemática exigirá muito esforço da consciência focada.

Em síntese, clareza significa ampliação da consciência, que se caracteriza pela inclusão, e exatidão significa fechamento do foco da consciência. Nós necessitamos desses dois pólos, da dialética permanente entre um e outro para podemos criar, recriar e viver no cotidiano.

Sem a ampliação da consciência, permanecemos num estado restritivo e não nos apercebemos das múltiplas interrelações presentes no todo; sem a precisão, sem focamos nossa consciência, podemos no perder na amplidão das possibilidades. Deste modo, no cotidiano, necessitamos tanto a capacidade de ampliar como da capacidade de focar nossa consciência; necessitamos tanto da clareza quanto da exatidão.

Uma permite a percepção e a decisão adequadas, a criação; a outra permite a ação eficiente e, ao mesmo tempo, adequada porque assentada sobre a clareza. Sem a clareza não acessamos os conhecimentos mais adequados para uma decisão; sem a precisão, nossa ação não será eficiente, mas sim dispersa.

Por último, importa observar que o tempo de permanência em um estado ampliado ou em um estado focalizado de consciência dependerá do ato que estivermos praticando. Por vezes, permaneceremos por um tempo razoável num estado de silêncio meditativo e, então, permaneceremos um bom tempo na busca do estado ampliado de consciência, na demanda da clareza sobre alguma coisa; ou ainda, quando estamos na busca de uma solução para algum problema complexo que temos à frente, seja na arte, na ciência, na tecnologia,... Outras vezes, nosso contato com o estado ampliado de consciência será muito rápido em função da necessidade emergente e urgente de tomarmos alguma decisão.

2. Atividades lúdicas e dialética dos estados de consciência

Como anunciamos no início deste texto, anteriormente, já definimos, do ponto de vista interno do sujeito, a experiência lúdica como aquela que propicia ao sujeito uma experiência plena, no sentido de que, enquanto se participa e se vivencia uma atividade lúdica, o sujeito se entrega a ela por inteiro e, então, se sente livre, alegre e feliz, expandido, com ego ampliado, com possibilidades de acolher tudo e a todos.

Neste momento, é possível compreender que na experiência de uma atividade lúdica, o participante vivencia a dialética entre os estados ampliado e focado da consciência. E isso ocorre muitas vezes durante uma única experiência. Ela se amplia para que o participante escolha a melhor forma de realizar a tarefa que tem pela frente e ela se foca para que possa efetivamente realizar a atividade que necessita de praticar. Se permanecer na expansão, não ocupará o seu lugar; se permanecer na focalização, não perceberá com clareza a decisão que necessita de tomar.

Um exemplo poderá ajudar a compreender essa dialética presente na participação de uma atividade lúdica. Brincar de "quatro cantinhos". É aquela brincadeira onde os participantes se organizam em quatro grupos, um em cada canto do espaço reservado para a brincadeira. Em cada canto há uma marca de proteção, onde não poderá ser pego e dentro do qual permanecerá o grupo. Um dos participantes permanece no meio do espaço, como o "seu lobo", que deverá tentar pegar todo aquele que tentar passar de um canto para outro. Quem for pego, nessa circunstância, substituirá o "seu lobo", no papel de "pegante". Para vivenciar essa brincadeira, importa usar os dois estados de consciência: "ampliado", tendo em vista perceber o melhor caminho para locomover-se sem ser pego; e "focalizado", tendo em vista agir e vencer o caminho escolhido. É com esse duplo movimento da consciência que se brinca, assim como se faz qualquer coisa na vida, onde desejemos "agir com clareza". Agir dessa forma dá alegria e, por isso, ocorre uma ação lúdica.

Com isso, fica claro que não podemos permanecer somente no estado ampliado de consciência, assim como não podemos permanecer só no estado focalizado de consciência. Permanecer em qualquer um dos extremos traz distúrbios para a vida. Só no estado ampliado, perdemos as bordas da realidade; só no estado focalizado, perdemos as possibilidades da clareza e da criatividade. Agir ludicamente implica em operar com a dialética dos estados ampliado e focalizado da consciência.

Na vivência das brincadeiras, usualmente, o tempo de permanência em cada um dos estados de consciência, dialeticamente relacionados, é pequeno. Por vezes, usa-se um átimo de tempo em um ou outros dos estados de consciência, pois que as decisões e os atos necessitam de ser muito rápidos, a fim de participar de tudo o que ocorre.

3. O processo de desenvolvimento

Aprender a usar essa dialética entre os estados focalizado e ampliado de consciência permite a cada um de nós nos servirmos da criatividade nas múltiplas experiências de nossas vidas. Aprender a servir-nos dessa dialética permite não nos prendermos nas mais variadas situações em que nos fixamos em nosso cotidiano vivencial. O mais comum de todos nós é atuarmos a partir só da consciência num estado focalizado --- do certo e do errado; com isso, perdemos muitas oportunidades de encontrarmos as melhores e mais adequadas saídas para nossas mais variadas experiências, sejam elas as cotidianas, as profissionais, aquelas relativas às relações entre pessoas e tantas outras.

Uma prática educativa lúdica possibilitará a cada um de nós e a nossos educandos aprendermos a viver mais criativamente e, por isso mesmo, de forma mais saudável. Transitaremos com mais facilidade para o estado de "clareza", em busca de soluções criativas para o nosso cotidiano, assim como também transitaremos facilmente para o estado focado (exatidão) quando necessitarmos de agir praticamente, tendo em vista realizar as soluções que acessamos.

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