FAZER-DE-CONTA QUE É ADULTO, HABITANDO UM MUNDO GUIADO PELO DESEJO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O BRINCAR E A PSICANÁLISE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL (0 A 6 ANOS)

Maria da Glória Feitosa Freitas



 

RESUMO

Este artigo realiza uma possível conexão entre o pensamento da psicanálise sobre o brincar infantil e a educação em oposição às determinadas práticas apelativas do uso de material lúdico espontâneo infantil para formulação de propostas para o cotidiano da Educação infantil oferecida em momentos de Formação de Educadores infantis.


 

Trataremos aqui de realizar um percurso que terá como ponto de partida uma reflexão sobre as considerações divergentes apresentadas pela Psicanálise sobre o brincar infantil que são opostas às teorizações da psicologia clássica do jogo infantil representadas aqui por Stanley Hall e Groos .

Em seguida apresentaremos a possibilidade de realizar uma conexão entre o pensamento da psicanálise sobre o brincar infantil e a educação em oposição às determinadas práticas apelativas do uso de material lúdico espontâneo infantil para formulação de propostas para o cotidiano da Educação infantil oferecida em momentos de Formação de educadores infantis.

Utilizaremos aqui reflexões sobre pesquisas exaustivas realizadas desde 1995 em diversas cidades da Zona Norte do Estado do Ceará conduzidas por nossos alunos dos Cursos de Licenciatura (e que supervisionamos) e nossos alunos-orientandos concludentes do Curso de Pedagogia (e que orientamos a pesquisa e a escrita da Monografia de conclusão de curso), ambos da Universidade Estadual Vale do Acaraú.


 

1. Da Psicologia do Jogo à Psicanálise: Brincar é fazer-de-conta que é adulto


 

Nesta nossa caminhada pelos domínios da Psicologia do Jogo foi possível compreender que as teorias psicológicas clássicas sobre o jogo infantil levam à crença na possibilidade de estimular capacidades maturacionais com jogos infantis. Os adultos que assim agem são considerados portadores de idéias avançadas! São dignos da titulação de modernos. Sendo assim, pais modernos não se arriscam a construir brinquedos com latas, mas engajam-se nas tarefas de comprar e entregar aos seus filhos os brinquedos a serem consumidos em uma faixa etária específica, e de um modo já prescrito.

Neste sentido, nos lembra que muito tempo antes da descoberta das faixas etárias e da comercialização de brinquedos específicos para cada idade, brinquedos fabricados e caros, sofisticados, e denominados educativos, os adultos amorosos davam brinquedos aos filhos. As tumbas de crianças dos tempos pré-históricos, que são descobertas hoje, provam que existiam tais jogos específicos dos filhotes dos homens, meninas e meninos. Valor e prazer, metáfora do desejo, se conjugavam diferentemente conforme o destino procriador futuro da criança que com amor os seus pais enterraram com seus brinquedos preferidos.


 

A autora nos informa que é "essa mesma a chave do jogo, de todos os jogos de todos os humanos, e não somente das crianças. Todo jogo é mediador de desejo, traz consigo uma satisfação e permite expressar seu desejo aos outros, em jogos compartilhados."

Dolto entende que os adultos, esquecidos da riqueza criativa de suas infâncias, passam a ofertar às crianças os brinquedos que a eles mesmos agradaria receber ou insistem em que escolham a boneca que mais lhes agrada.

A psicanalista francesa lembra-nos que as crianças se deixam influenciar pelo que o adulto diz, mas, na verdade, acabam não se divertindo quando ganham a boneca. Elas a desejam porque o adulto parece desejar (a criança se alinha à identificação com o adulto). Se o adulto acha esta boneca bonita, a criança se deixa subjugar, mas na verdade não é o que vai alimentar seu imaginário e fazê-la viver. Todas essas bonecas que bebem, que comem, que fazem xixi – só falta fazer cocô! – não servem nem um pouco para as crianças. Elas brincam na imaginação com a idéia de tê-las e, depois que as ganham, não as usam mais. Ao contrário, é angustiante essa boneca que repete uma fita cassete, sempre a mesma. As crianças mostram-nas para outras pessoas, mas, em seu ser profundo, não se divertem com elas, porque não podem imaginar que a boneca seja capaz de dizer outra coisa além do que diz.

Winnicott também condena esta mobilização adulta em prol de certas espécies de brinquedos que mais satisfazem aos adultos do que às próprias interessadas. De forma similar, a Barbie – tendo completado os seus mais de quarenta anos de existência, será sempre jovem (!) – nos fala deste proceder do adulto moderno junto ao brincar infantil:

Barbie se torna, assim, o símbolo de uma considerável mudança na concepção moderna da infância. Progressivamente, as crianças do pós-guerra ocidental não são mais convidadas simplesmente a fazer felizes os adultos, oferecendo-lhes a imagem da infância feliz que não tiveram. Elas, hoje, ainda crianças, parecem dever realizar – ou no mínimo caricaturar – as imagens da felicidade que os adultos gostariam para si. Logo, uma Barbie na menina, para que, se possível, aprenda a se parecer com uma adulta feliz.


 

Propomos que as teorizações psicológicas sobre o brincar tenham atingido fortemente os adultos, aqueles que vestem a 'fantasia' de treinadores de capacidades inatas necessitadas de serem estimuladas. Existiriam tais capacidades exigindo maturação adequada? As crianças de Guriú, no litoral Oeste do Ceará em suas atividades lúdicas que observamos desde 1996, vão muito além do treino de funções previamente ofertadas pela 'mãe-natureza' e que devem ser desenvolvidas? O brincar de ontem e de hoje de Guriú vai além do pré-exercitamento de funções (base do pensamento de Groos) ou de herança instintiva dos antepassados (insistência de Stanley Hall)?

Desde 1996 perseguimos a investigação sobre o brincar infantil das crianças desta comunidade pesqueira. E pareceu-nos que as meninas de hoje (que 'imitam' artistas da televisão) e os relatos das meninas de ontem ou seja as memórias do brincar de mães e avós (encenando os seus dramas há até 60 anos atrás) realizam uma forma de entender o mundo que as cerca. Na hora do faz-de-conta, repetem palavras pronunciadas por personagens das novelas, dançam a dança da 'bundinha' (referência ao grupo musical baiano), cantam músicas de cantores de sucesso nos meios de comunicação. Enfim, atualmente, tentam entender o encantamento dos adultos presos à tela da televisão. É possível 'profetizar' que estas danças não cheguem ao verão seguinte, mas 'noticiam' algo de um desejo sexual infantil disfarçado na 'bailarina' Carla Perez que, na época da nossa passagem em visita de pesquisa, em 1998, ainda era do Grupo 'É o Tchan'.

O que reproduzem é recolhido ali mesmo na sala, está dentro do objeto mais precioso de algumas casas de Guriú: a televisão. Dolto nos lembra que observar o mundo adulto é tarefa muito apreciada pelas crianças.

Um grande prazer também, para as crianças, é observar o pai no trabalho, a mãe, artesãos, operários. São prazeres passivos, inteligentes, observadores, às vezes meditativos. A televisão herda esse descrédito da aparente passividade da criança que gosta de vê-la. Para muitos pais, isso se chama perder tempo não fazendo nada. 'Então, vá brincar!', dizem-lhe quando a surpreendem olhando os outros trabalharem ou vendo televisão. A criança às vezes responde: 'por quê? Eu estou me divertindo muito.' Mas os pais não compreendem, ao vê-la assim imóvel, fascinada. Para eles, a criança deve brincar. Cumpre saber que é bom, às vezes muito bom também, para uma criança sensível e inteligente, brincar de ficar silenciosa consigo mesma e com os familiares, com o corpo e o coração em harmonia com o espaço e o tempo que passa, e impregnando-se do ambiente no qual se sente feliz de viver.

Crianças de Guriú reproduzem, usando as suas bonecas e até mesmo telefone feito de caixa, os diálogos das sofredoras e das imensamente malvadas personagens das novelas de tv's mexicanas ou globais (TV Globo); inspirações que a televisão lhes apresentava. Meninas de Guriú de ontem apresentam dramatização de lutas intermináveis entre o bem e o mal (mocinhas boas, mulheres más). Estamos inclinados a crer, que mais do que treinar capacidades maturacionais de crescimento, inteligência, aprendizagem ou capacidades emocionais, esses dramas de ontem e de hoje falam da vida, dos acertos e desacertos do viver e estão para lá do que pode ser racionalmente resolvido, com 'doses' certas de estimulação. Constituem estes gestos de faz-de-conta uma resolução para aquilo que ainda não entendem do mundo adulto e para os males que assolam a existência humana.

Quando de uma de nossas passagens por Guriú, presenciamos uma pergunta lançada às demais brincantes, quando uma criança indagava quem era que ia ser a 'Maria do bairro', personagem principal de novela mexicana. O que pode haver de pré-exercitamento de funções ou de herança instintiva antepassada no gesto de imitar uma sofredora mexicana hoje ou uma doméstica sofredora no passado (falamos aqui dos dramas cantados)?

Aprender a sofrer, exercitar os esquemas inatos do sofrimento, lançar mão de uma herança instintiva de suportar o sofrimento, é disto que se trata? Por que o sofrimento é escolhido como tema de brincar ontem e hoje? Não é estranho exercitar o drama, os desencontros, os desenlaces, as misérias da vida cotidiana?

Nossa entrevistada, antiga menina-dramista, recitou-nos dramas-cantados que falam de um certo entendimento da vida. As meninas diziam aos adultos e demais espectadores o que entendiam do que somos ao longo da vida e quais os segredos dela, das conquistas, dos amores, das seduções, do desejo que pulsa em nós e nos faz sujeitos.

Pensemos nestas meninas–dramistas e no que as animava! Esquecendo a obsessão moderna de pré-exercitar ou testar capacidades herdadas, o que pode ser este brincar? Seria um deslocamento do desejo de satisfação sexual direta infantil, que dá "lugar a uma satisfação sublimada, artística, por exemplo, graças ao prazer intermediário de gratificação narcísica do artista? É realmente o narcisismo do artista que condiciona e favorece a atividade criadora de sua pulsão sublimada."?

A Psicanálise afirma-nos que os desejos inconscientes podem ser 'disfarçados'. Freud lembra-nos que reprimir os desejos inconscientes nos faz perder fontes de energia mental que (...) teriam sido de grande valor na formação do caráter e na luta pela vida. Conhecemos uma solução muito mais conveniente, a chamada 'sublimação', pela qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual. Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização.


 

A possibilidade de criação, elaboração, produção e invenção humanas tão preciosas para as mais diversas atividades humanas é expressão destes desejos inconscientes transformados em trabalho humano, em sublimação.

Nasio nos informa que a sublimação é a única noção psicanalítica capaz de explicar que obras criadas pelo homem – realizações artísticas, científicas ou mesmo esportivas – distantes de qualquer referência à vida sexual, sejam produzidas, ainda assim, graças a uma força sexual nascida de uma fonte sexual. As raízes e a energia do processo de sublimação, portanto, são pulsionalmente sexuais (pré-genitais: orais, anais, fálicas), enquanto a conclusão desse processo é uma realização não-sexual conforme os ideais mais consumados de uma dada época. Assim, podemos afirmar desde logo que o conceito de sublimação responde fundamentalmente à necessidade, para a teoria psicanalítica, de dar conta da origem sexual do impulso criador do homem.


 

Temos, portanto, a possibilidade de dá um caráter criador para impulsos que são originariamente sexuais. Nossas pulsões viram criações artísticas que embelezam as nossas existências. Transformamos uma pulsão em jeitos criativos e inventivos de levar os dias. E assim, as nossas horas existenciais são amenizadas de toda sorte de mal-estar, sempre que possível. Nasio afirma que "o conceito de sublimação pode ser encarado segundo dois pontos de vista complementares, que unem as diferentes abordagens freudianas: ou a sublimação é a expressão positiva mais elaborada e socializada da pulsão, ou é um meio de defesa capaz de temperar os excessos e os extravasamentos da vida pulsional."

Pensando no brincar infantil e nestas dramatizações de ontem e de hoje que reproduzem um mundo por entender (qual é o 'obscuro' desejo que anima a vida adulta ?), podemos afirmar que a sublimação age aí, no brincar?

Klein , uma importante responsável pelo uso do brincar na situação analítica, defendia a tese de que, por trás de qualquer forma de atividade lúdica existe um processo de descarga de fantasias masturbatórias, operando em forma de um impulso contínuo para brincar; que este processo, agindo como uma compulsão à repetição, é o mecanismo fundamental dos folguedos e de todas as suas sublimações subseqüentes; e que as inibições no brinquedo e nos estudos surgem de uma repressão indevidamente vigorosa dessas fantasias e de toda a vida imaginativa da criança. Suas experiências sexuais estão relacionadas com suas fantasias de masturbação e o jogo oferece tanto a umas como às outras, um meio de expressão e de ab-reação.


 

É, portanto, tranqüilizador para o Educador infantil perceber que a criança encontra-se as voltas com a construção do seu brincar da forma mais espontânea e livre possível.

Apresentaremos em seguida as concepções de Freud sobre o brincar infantil e a semelhança com criação literária.


 

1.1) A Psicanálise, a criação literária e a brincadeira infantil


 

Na obra de Freud, encontramos um elo de ligação entre a poesia e o brincar. Em trabalho publicado em 1908, o autor indaga pela origem do material criativo produzido pelos escritores, e questiona se estes primeiros traços de atividade imaginativa estariam localizados na infância.

Freud acreditava que a atividade mais intensa e favorita da criança é o jogo, a brincadeira. Sendo assim, podemos propor que a infância é o tempo do brincar. Uma criança brincando, indaga Freud, estaria se comportando de forma similar à de um poeta; ou seja, criando um mundo particular para si mesma e adequando este mundo novo ao seu prazer (aquilo que não lhe agrada é reajustado ao seu agrado, nas brincadeiras)?

Tavares lembra que Freud, em Escritores criativos e devaneios (1976), vai dizer que a ocupação favorita e mais intensa das crianças é o brincar ou os jogos. 'Acaso não poderíamos dizer que cada criança ao brincar se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, junta os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade?' Acrescenta ele: 'O brincar da criança é determinado por desejos; de fato, por um único desejo que auxilia no seu desenvolvimento, o desejo de ser grande e adulto. A criança quando pára de brincar só abdica do elo com os objetos reais, em vez de brincar, essa particularidade de se utilizar de um imaginário, de estarem suportados em um imaginário. Não podemos esquecer que tais imagens são suportes do significante dentro de uma cadeia associativa.


 

Santa Roza acredita que, neste trabalho publicado por Freud em 1908, o brincar é visto "como uma das primeiras manifestações da fantasia, um precursor da atividade imaginativa que rege a produção literária e poética".

A criança brincando e criando as suas fantasias inerentes ao ato de brincar é precursora do que é próprio aos escritos criativos de poetas. É uma espécie de poeta que brinca com coisas sérias da vida cotidiana. Que vai impondo a cultura uma marca pessoal e mergulhada na leveza que as tais fantasias possibilitam.


 

A autora acima citada acredita que no brincar a criança se comporta como um escritor criativo, construindo uma nova ordem de coisas que lhe agrade. O jogo infantil comporta então esta reconciliação dos dois princípios presentes na dialética da desilusão / ilusão: o princípio de realidade se instaura na perda do objeto através de sua representação, e a partir daí é instaurado um espaço ilusório que permite a mediação entre o desejo e sua interdição. Nesta visão o brincar é constituinte do fantasma, reordenando-o num fluxo permanente de deslizamento metonímico-metafórico. O brincar modifica então a dinâmica do sujeito, pois sua dimensão simbólica renova a construção fantasmática.


 

Assim, Brincando, a criança leva o mundo bem a sério. Freud considera que a criança faz uma perfeita distinção entre a realidade e o jogo. Tavares nos lembra que para Freud a antítese de brincar não é o sério, mas o que é real" (Freud, 1976, p. 149). Freud referia-se, certamente, a esse real como realidade dos adultos. De qualquer maneira, tem nessa sua observação o cunho preciso que Lacan coloca a respeito do real, de um impossível, porque, para uma criança, é isso que representa o mundo dos adultos, uma vez que ela não tem acesso ao ato. Isto é, um menininho, ao baixar as calcinhas de uma menininha para 'lhe aplicar uma injeção', estará brincando de médico, não tem de responder em nome próprio no campo social pelo seu ato; será sempre uma brincadeira. Desse percorrido depreendemos que o brincar é imprescindível na estruturação psíquica de uma criança. É o que lhe permite funcionar sem cair no real, isto é, não ficar reduzido a um 'joelho' – , nem na alienação absoluta no Outro, ou seja ser ecolálico. É o que permite, como diz Charles Melman (1997), certa liberdade subjetiva.


 

Para Freud, o poeta e a criança que brinca ocupam-se da mesma atividade, ou seja, da criação de um mundo fantástico e que é levado com a maior seriedade por ambos. O que em si não implica que confundam este mundo que lhes é próprio (às crianças e aos poetas) com a realidade. O autor lembra, em sua obra de 1908, que desta imaginário mundo criado pelo poeta surgem conseqüências muito importantes para a técnica artística, pois muito do que, sendo real, não podia procurar prazer nenhum pode procurá-lo como jogo de fantasia, e muitas emoções penosas em si mesmas podem converter-se em uma fonte de prazer para os leitores deste mesmo poeta.

A seguir apresentaremos as reflexões realizadas por Freud a partir do livre brincar de seu neto e que resultaram em inúmeras produções de estudiosos pós-freudianos sobre a interligação do brincar infantil e a constituição subjetiva humana.


 

1.2. Fort-da, o brincar infantil e as idas e vindas que a vida dá...


 

Em obra publicada em 1920, Além do Princípio de prazer, Freud vai também deter-se em analisar o brincar infantil, concentrando as suas atenções no que denominou exame do "método de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras atividades normais" ; referia-se às brincadeiras infantis.

Ele vai interessar-se pelo que falta a essas teorias: "o motivo econômico, a consideração do prazer envolvida." Queria saber sobre a obtenção de prazer que a brincadeira traz às crianças.

O acaso trouxe para a vida de Freud a observação de uma brincadeira espontânea de seu neto, e seu conteúdo repetitivo, que se tornaria muito importante dentro do circuito psicanalítico. O neto de Freud, contando com a idade de um ano e meio, falando raras palavras e com um amplo repertório de sons significativos para os seus ouvintes familiares, era o que poderia se chamar de uma 'boa criança'.

Entre os seus hábitos, não se encontrava a desobediência às ordens de não pegar em certos objetos ou de não invadir certos cômodos da casa. O garotinho não costumava incomodar os seus pais à noite. Este bom menino não chorava quando sua mãe partia por algumas horas. Muito ligado à mãe, dependia dela para ser alimentado e receber os cuidados necessários à sua idade.

Freud percebeu que a criança se ocupava em lançar os seus brinquedos ou outros objetos em lugares que os ocultavam e que exigiam um certo tempo para retomá-los.

Ao jogar um objeto debaixo da cama, por exemplo, ia produzindo um longo som 'o-o-ó', para em seguida falar com satisfação e interesse 'fort' (fora). Freud percebeu que se tratava de um jogo e que envolvia uma atitude de mandar os brinquedos irem embora.

Em outra oportunidade, Freud assistiu a um momento em que a mesma criança brincava com um carretel. Este carretel tinha um cordão amarrado ao seu redor. Ficou evidente, nesta observação, que o interesse da criança não era fazer deste objeto um carro.

O que fazia era lançar o cordão em direção à borda de sua cama, conseguindo colocar o carretel em posição escondida (debaixo da cama). Esta atitude era acompanhada por um entusiasmado 'o-o-o-ó'. A sua atitude seguinte era arrastar outra vez o carretel, conseguindo puxá-lo (com o cordão) para fora de onde havia ficado escondido e comemorava o reaparecimento, dizendo 'da' (aqui).

O autor citado percebeu que o jogo completo implicava em desaparição e reaparição do objeto, incansavelmente repetido. Mesmo que a ação mais repetida fosse o ato de desaparecimento do brinquedo, havia um prazer maior expresso diante do segundo ato (o retorno). O autor nos lembra que essa "era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato".

Ele percebe que neste gesto lúdico infantil havia algo da realização cultural infantil mais importante, "a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance".

Esta perda é compensada no ato de fazer desaparecer e aparecer os objetos que se encontram ao seu redor. É como se fosse possível viver, no contato com o mundo dos objetos, o triunfo glorioso da volta da mãe, que só será vivido após o seu desaparecimento. Exercendo um papel ativo com o carretel, o menino vai dissipando, com a situação lúdica, o sentimento de abandono envolvido na situação de separação e reencontro com a mãe, que não pode ser encarado pela criança com indiferença ou como algo agradável.

Freud questiona como é que uma situação desagradável, penosa, que implica em sofrimento (vivenciada através de um jogo), consegue manter harmonia com o princípio do prazer. "Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio de prazer?" E responde à sua indagação, afirmando que a partida da mãe tinha de ser dramatizada "como preliminar necessária a seu alegre retorno, e que neste último residia o verdadeiro propósito do jogo."

Qual a razão de a criança repetir mais intensamente o desaparecimento do objeto ? Qual a razão de repetir... repetir... repetir o desagradável ? Desta resposta vai cuidar a Psicanálise nos anos seguintes, relacionando-a à constituição do sujeito. Há algo de muito contingente, de pessoal, de intransferível do sujeito que se expressa nesta compulsão às repetições.

O autor vienense defende que a criança no "início, achava-se numa situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo, assumia um papel ativo."

Além da explicação freudiana da realização do fort-da como forma de tomar um papel ativo, diante do desaparecimento da mãe, o autor propõe ainda que lançar longe um objeto (nas horas de brincar) pode representar uma forma de vingança contra a mãe, que o abandona aqui e ali, restando-lhe ficar só e com o seu carretel na mão. E Freud comenta que isso significaria um desafio: "Pois bem, então: vá embora ! Não preciso de você. Sou eu que estou mandando você embora. "

Este gesto repetitivo (e representativo?) de uma situação penosa, o desaparecer da mãe, só acontece (segundo Freud) "porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta."

Este autor compreende que "em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem." As crianças, portanto, desejam crescer e realizar o que fazem os adultos, para assim se apropriarem de um saber sobre o desejo que anima o mundo adulto.

Comentaremos agora sobre as possibilidades de conexões entre o pensar psicanalítico, o brincar infantil e o atendimento educacional às crianças de 0 a 6 anos.


 

2. CONEXÕES ENTRE A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA SOBRE O BRINCAR INFANTIL E O ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS DE O A 6 ANOS EM INSTITUIÇÕES ESCOLARES


 

2.1) as ilusões psico-pedagógicas recorrentes nas formações de educadores de educação infantil


 

Temos a compreensão que impera em muitas práticas de atendimento às crianças de 0 a 6 anos realizadas na Zona Norte do Estado do Ceará a crença nas ilusões veiculadas pelas certezas que parecem verdades incontestáveis da Pedagogia. Muitas experiências de educação infantil são atreladas as certezas rousseaunianas das quais a pedagogia atual é ainda aliada. Profissionais que atendem crianças em idades pré-escolares são capacitados a acreditar que, conhecido o "princípio, percebemos claramente o ponto em que abandonamos o caminho da natureza".

Formadores de Educadores infantis mesmo que de posse de um ideário mais moderno que o de Rousseau, ainda assim defendem uma educação natural com o uso de brincadeiras infantis. Vinculados as ilusões que são ofertadas como grandes verdades, poderão levar um longo tempo para suspeitar, como sugere Lajonquière, que desejar educar "em nome da Natureza é negar aos pequenos a possibilidade de que venham a usufruir do desejo que os humaniza. Em outras palavras, lembrando Freud, é como enviá-los numa expedição polar vestidos com roupa de verão e providos de mapas dos lagos italianos, isto é, resignadamente para morte".

Alguns pedagogos da Zona Norte do Estado do Ceará encarregados da Formação de Professores de 0 a 6 anos dedicam-se em registrar o universo lúdico infantil e capacitar docentes a construírem uma nova metodologia que incorpore elementos das brincadeiras espontâneas a serem coletadas, unificando as práticas em torno da transformação de jogos infantis em um só método lúdico.

Lajonquière lembra que a tese da educação a uma natureza ilusionista não lamenta apenas o caráter omisso das 'intervenções' pedagógicas atuais. A natureza que se recorta no horizonte do cotidiano escolar apresenta-se como um dever ser psicopedagógico. Assim espera-se que todo o existente revele ser uma disciplinada manifestação natural daquilo que se supõe ser um único ser verdadeiro.


 

Estes Formadores de Educadores infantis estariam agindo guiados por crenças pedagógicas que parecem verdades? Pensar assim é agir conforme uma filiação? Há uma filiação agindo nas mentes de educadores infantis? A filiação à Pedagogia moderna? "Pensar o ato educativo é factível na proporção de uma adequação naturalmente bem sucedida entre, por um lado, capacidades maturacionais e, por outro lado, estratégias científicas de ensino, é um traço característico do pensar moderno".

Os encarregados de oferecer formação pedagógica para os profissionais que trabalham na educação infantil na Zona Norte do Estado do Ceará estariam menosprezando os desejos singulares que se transformam em jeitos únicos de cada Professor ensinar, em nome da uma obsessão de criar um método, tarefa comum aos pedagogos modernos?

Quando as propostas pedagógicas para atendimento a infância de 0 a 6 anos conseguem ser resumidas em atividades únicas para todas as escolas e para a execução de todos os professores da rede pública (por exemplo) e tudo pode ser resumido em ver a criança sob a miopia de um organismo em desenvolvimento e com tempo hábil para maturação; revelam-se, aos educadores infantis que existem técnicas, métodos e estratégias infalíveis e isso é algo de muito complicado.

Julgamos que esse proceder dos Formadores de educadores infantis colaboram para o afastamento nas práticas pedagógicas voltadas as crianças de 0 a 6 anos das possibilidades singulares de cada vivência em cada sala de aula distinta. E a fortaleza de tais ilusões pode garantir que a unificação de atividades para todo um conjunto de salas de aula e de crianças com singulares histórias de vida é a solução para as vicissitudes enfrentadas pelas crianças que permanecem boa parte do dia nas creches, escolas maternais, pré-escolas e outras instituições de atendimento.

Só aos poucos, já que as ilusões asseguram pseudo garantias de paraíso ainda na terra e nas classes escolares, é que a Psicanálise poderá ir ensinando aos Formadores de Educadores infantis que a criança aprende muito mais com o Professor, por amar este Professor, por transferir-lhe o poder de saber ensinar, do que com os métodos, por mais alegres que possam parecer. Métodos (e isso esquecemos!) desprovidos do processo de elaboração daqueles que lhes colocam em prática, ou seja, os educadores infantis.

Aprendemos com Lajonquière a ter um maior respeito pelas práticas que cada educador vai elaborando ao desempenhar o seu ofício, já que todo aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir. Aquilo que o mestre ensina, embora seja dele, pois o apre(e)endeu, não lhe pertence. O aprendido é sempre emprestado de alguma tradição que já sabia o que fazer com a vida. Assim, aquele que aprende, de fato, contrai automaticamente uma dívida que, embora acredite às vezes tê-la com seu mestre ocasional, está em última instância assentado no registro dos ideais ou do simbólico.


 

Sem acreditar que a Psicanálise é a única verdade sobre a realidade que nos cerca, e que de posse de seus mandamentos seremos os para sempre iluminados; este referencial teórico poderá ajudar a questionar às certezas pedagógicas de que a unificação das atividades diárias planejadas por técnicos para serem executadas pelos professores infantis. Formadores de educadores infantis podem, aos poucos, compreender que o "ato de educar de cada professor diz respeito a um modelo que se inaugura e se declina no próprio ato ou no conjunto desses, mas não se torna propriamente exemplo a ser seguido, objeto de imitação".

Pereira, baseado em entrevistas realizadas com professoras (consideradas por a comunidade escolar aonde atuavam como profissionais bem sucedidas na sua tarefa de ensinar) vai sugerir que as suas entrevistadas "parecem intuir a certeza de que as experiências são únicas, sujeitas às incongruências cotidianas, às surpresas pouco lineares, às instabilidades causadas pelo inefável da experiência, pelo avesso da funcionalidade modelável".

Estas reflexões sobre Psicanálise e Educação se levadas ao alcance de educadores infantis poderão ajudá-los a refletir que mais importante do que as técnicas lúdicas desejadas pelos mais bem intencionados dos pedagogos formadores de educadores infantis são as vivências com os nossos mestres.

Freud, refletindo sobre a sua vida de estudante e sobre a psicologia do escolar (l9l4), questiona que é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? Ela foi por causa disso definitivamente bloqueada.


 

Freud argumenta que transferimos para estes professores algo que se relacionava com as nossas vivências domésticas. Nossos mestres são muito mais do que arquitetos de técnicas, métodos e estratégias, para o uso em sala de aula. É importante ressaltar a relevância de nossos antigos mestres; e lembrar que transferimos "para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa".

Aos formadores de Educadores infantis que insistem que o uso dos jogos em sala de aula transformados em atividades lúdicas pedagógicas seria uma forma de fazer a escola ser mais atrativa para a criança e, assim, de ajudar a combater os altos índices de reprovação e evasão apresentados nas estatísticas dos órgãos públicos de educação; poderíamos indagar: onde fica a possibilidade destes educadores infantis serem elevados a categoria de capazes de criar os seus próprios caminhos no caminhar?

Mesmo não estando de posse dos índices de reprovados e evadidos das escolas, alguns especialistas em treinar professores infantis da Zona Norte do Estado do Ceará não cansam de repetir que a utilização de brincadeiras infantis transformadas em material pedagógico bem organizado, planejado e vendido como mercadoria já testada e aprovada cientificamente é a solução. Será que o fracasso da escola de educação infantil é somente da falta de um método criado a partir das brincadeiras infantis? Uma solução unificante para tão diferentes salas de aula repletas de tantas diversificadas subjetividades não seria uma ilusão, muito recorrente entre especialistas em educação infantil, de que os jogos transformados em metodologia de sala de aula serviriam para melhorar o interesse e a aprendizagem dessas crianças e inibir as evasões e reprovações.

Será verdadeiro que, mesmo diante das deficiências de formação dos professores, unificando as práticas pedagógicas em um mesmo método lúdico, favoreceremos a aprendizagem das crianças de 0 a 6 anos? É possível indagar: se alguém deixa de aprender é pela exclusiva falta de um método eficaz e elaborado a partir da sistematização de um inventário das brincadeiras infantis (0 a 6 anos)? A unificação da condução pedagógica, em torno de um método, dissipa aquilo que diferencia uma criança de outra na hora de aprender? O método teria uma capacidade mágica de homogeneizar as diferenças e singularidades do aprendiz? O modo ímpar de agir de um certo professor infantil unifica-se com um método?

Devemos nos apoiar na certeza da eficácia de um método lúdico-pedagógico previamente planejado por sujeitos que não terão o papel de executá-lo (Os Pedagogos que já levam atividades prontas para serem executadas com crianças e eliminam o papel criativo do educador infantil)? E não oferecerá a oportunidade para os educadores infantis serem capazes de criar seus próprios recursos pedagógicos? Parece que os alguns Planejadores de Educação infantil da Zona Norte do Estado do Ceará esquecem o valor da dívida simbólica que uma geração de educadores carrega em relação às gerações antecedentes que lhe serviram de mestres e lhes ofertaram saberes, e que impulsiona certas atitudes de adultos diante das crianças, mais importantes que métodos (pois guiados pelo desejo de educar).

E assim, tendo a responsabilidade da criação de um método que partiria do lúdico, estes profissionais que formam educadores infantis exigem para si mesmos um papel mais importante que a própria filiação simbólica; que faz agir, há muitas gerações, os professores de Educação infantil?


 

O ato de ensinar instaura, retrospectivamente, um tempo no qual o sujeito estava desprovido de saber algum e, portanto, de agora em diante, quer saber sobre aquilo que passou a fazer falta. Isso que se quer saber, o aprendiz o supõe no mestre, a ponto de pretender usufruir um pouco dele, ofertando, em troca, seu amor, bem como demandando àquele o restante para, assim ambos fazerem UM, a quem nada falte. Isso que se quer saber, o aprendiz o supõe no mestre, a ponto de pretender usufruir um pouco dele.


 

E podemos indagar se seria certo deslocar o saber de um mestre (filiado aos seus antepassados e queridos mestres) para um método lúdico-pedagógico planejado por alguém que não trabalha diretamente com crianças de 0 a 6 anos e que talvez nunca tenha vindo a trabalhar com outra coisa que não seja a criação de técnicas pedagógicas sem terem sido jamais educadores infantis?

Certos profissionais formadores dos educadores infantis da Zona Norte do Estado do Ceará estão obcecados com a preocupação com estratégias eficazes de ensino! Só pensam na intenção primeira de criar um método capaz de adequar brincadeiras infantis para ensinar saberes pedagógicos e assim minimizar as dificuldades de aprendizagem das crianças de 0 a 6 anos. Pois parecem acreditar que o "pedagogo detém o poder de calcular os efeitos dos métodos que coloca em ação".

Caminhando na eterna repetição do mesmo (repetição eterna da qual cuida a Psicanálise? ), que é sempre, e mais uma vez, transformar material lúdico (herdado de gerações anteriores) em jeito unificado de dar aula estes profissionais habitantes da Zona Norte do Estado do Ceará estariam filiados à mania da Modernidade de fazer da educação uma ciência pensam que estão fazendo papel de pedagogo moderno. Será esta a solução para as fracassadas atividades oferecidas aos meninos e às meninas de 0 a 6 anos?

Talvez possamos dizer para educadores infantis que o uso imediato das brincadeiras infantis no cotidiano das experiências de educação infantil é oferecer a oportunidade para que as crianças brinquem de ser adultos de forma mais livre e criativa possível. Que os pequenos de 0 a 6 anos façam seus cenários, seus roteiros, escolham os seus papéis, improvisem as suas falas e sejam capazes de criar seus adereços, de montar livremente os seus personagens. Para que isso aconteça é necessário promover o educador infantil à categoria de livre-pensador e removê-los da condição de incapazes de organizar criativamente um favorável cotidiano. E isso se torna impossível se o Discurso pedagógico prosseguir menosprezando as capacidades operacionais dos Educadores infantis e lhes oferecendo um programa já prescrito. É preciso ressuscitar a tradição docente do Educador infantil.


 

2.2) A morte da tradição docente e algumas repercussões na Educação infantil

Trataremos agora de uma reflexão sobre acontecimentos observados em algumas práticas educacionais pesquisadas em cidades da Zona Norte do Estado do Ceará e que articulam-se com a perspectiva teórica da morte da tradição docente e que esclareceremos a seguir.

Conversamos com um jovem concludente do ensino médio que pensava ser a África apenas um país. Preocupado com o vestibular, sabia que um futuro menos sombrio consegue-se com maior acesso aos saberes. Avançando no saber, uma senhora concluiu o Ensino Médio através de um sistema apropriado aos que estão fora da faixa etária adequada e com uso de método de tele-ensino. Estava comemorando a conquista e dizia que pouco havia aprendido. Aonde haviam mestres (no passado) apareceram os facilitadores da aprendizagem. O saber estava guardado dentro da TV. É natural ou o método oferecido a este estudante citado acima é mais uma das ilusões psico-pedagógicas testadas e aprovadas?

Lajonquière reflete sobre a capacidade de nossos antepassados de aprender, mesmo que com os mais tradicionais dos métodos de ensino:


 

De fato, os livros de história da educação nos informam, dentre outras curiosidades, que não foram poucos os séculos nos quais os aprendizes, de qualquer teor e gênero, não só copiavam e decoravam quanto 'eram tão capacitados'que aprendiam coisas que, hoje, são consideradas não acordes à 'linha natural de desenvolvimento infantil'. Alguém poderia contra-argumentar que desconhecemos se esses alunos de outrora aprendiam ou, mais ainda, se 'construíam seu conhecimento', ou apenas decoravam o ensinado. Essas dúvidas não nos surpreendem, bem como parecem-nos totalmente improcedentes uma vez que, se nossos antepassados não tivessem aprendido, então nós seríamos extraterrestres, pois se teria interrompido, há algum tempo, a transmissão histórica.


 

Racionamos energia e esforço educativo de mestres e aprendizes da educação em geral e também da educação infantil? Paradoxalmente, no momento em que mais lutamos contra qualquer mal-estar pedagógico e que há objetos disponíveis a nos entreter; é também o tempo em que estamos ameaçados da escuridão do não saber? Um apagão na educação? O que deve ser feito contra a obscuridade de saberes que dominará anos a educação, apesar das estatísticas governamentais espetaculares?

Refletindo sobre a ação docente, movimentada pela dívida simbólica (dos professores com o passado) e sustentada pela transferência (realizada inconscientemente pelo aluno e necessária à eficácia do ato educativo); descobrimos com Souza (1998) que a tradição docente havia morrido tragicamente e que este luto havia invadido o cenário de educação brasileira.

Em seu lugar nasciam métodos, estratégias e políticas educacionais inovadoras a cada dia. A Burocracia pensava a rotina das escolas e os professores obedientemente executavam. Já não tinha controle nem mesmo da avaliação da aprendizagem. Restavam-lhes um insignificante lugar de facilitador da aprendizagem, que os empurravam ou para o cinismo do bom executor das metas educacionais (um caso a ser premiado com dinheiro, de preferência!) ou para a instalação de um modo de agir melancólico, chegando aos sintomas que IPEC (Instituto de Previdência do Estado do Ceará) nenhum aprendeu ainda a curar, só restando como solução a readaptação dos ex-mestres e um lugar para ficarem encostados até a chegada da aposentadoria.

Nós percebemos, com Souza (1998), que um conjunto extenso de críticas lançadas contra a ação docente produzida pelo saber pedagógico, forçaram a dissolução da tradição pedagógica. A autora, reconhecida pesquisadora nas áreas de Historiografia, História da educação e em Psicologia da educação, revela que a crítica reiterada à instituição escolar propiciou a procura de modelos educativos que partissem da idéia de que nada, na antiga forma escolar, devia ser preservado; as reformas educativas passaram como meta zerar as antigas reformas, e mais do que isso, anular a experiência docente. Rapidamente a resistência de professores foi associada ao conservadorismo, suas práticas pensadas como fruto irrefletido da rotina escolar. A velha crença missionária dos professores nos benefícios do ensino foi esvaziada como resquício de uma percepção patrimonialista da profissão, incompatível com a moderna sociedade de mercado. Os professores foram instados pelos sindicatos a se perceber como trabalhadores e a esquecer qualquer especificidade distintiva de seu ofício. O cuidado e o zelo da tradição pedagógica da escola primária foram percebidos como estratégia feminina de encobrir a precariedade de conhecimento técnico e a ausência de preparação intelectual. A idéia de regência de aula foi liminarmente classificada como autoritarismo. A grande cultura que servia de lastro e que dava legitimidade à escola foi pensada como forma de dominação.


 

De posse destas reflexões, e percebendo o volume da gigantesca onda de ilusões imaginárias que inflacionavam a educação (que proíbe o educador de ensinar e o transforma em alguém que liga e desliga a TV e apresenta as instruções programadas por Burocratas da Secretária de educação), encontramos as mães-educadoras de Guriú ensinando suas filhas a dançar e cantar uma tradição já presente há mais de sessenta anos: seus dramas cantados, que aprenderam com suas antigas mestras. E, conseguindo novas gerações aprendam o que antes não sabiam: dançar, recitar, cantar, prender a atenção do público e inspira-lhes o riso ou até quem sabe lágrimas. Lançamos a hipótese de que a corrente de filiação simbólica que une (através da história) ex-dramistas (atuais mestres de dramas) e as novas dramistas é articulada através de uma dívida simbólica (por parte dos educadores) e da transferência de afetos edípicos (por parte dos aprendizes), que somados possibilitam a concretização do ato educativo e a efetiva aprendizagem.

As mestras de drama de Guriú e as meninas-dramistas agem sossegadamente? O certo é que metas educacionais governamentais, certezas pedagógicas inquestionáveis e uma mania absurda de cientifizar a educação não as incomodam. Poderíamos realizar a busca de uma corrente de filiação simbólica que mantém juntos pedagogos-mestres e seus aprendizes de pedagogos. Supomos existir também nestes encontros uma filiação simbólica.

Mas as meninas dramistas e suas mestres (ex-dramistas) parecem querer nos mostrar que algo esquecido nas práticas educativas encontra espaço nestas práticas relembradoras de que existiu um dia um passado (apesar das ilusões imaginárias que a TV anuncia e da vizinhança do progresso que já chegou em Jericoacoara, localidade famosa e vizinha ao Guriú). Estas falas das dramistas de ontem e de hoje revelam um ontem feito de gente, de sonhos, de desejos e não de evidências científicas. Pensamos então que pesquisar os dramas é descobrir algo sobre educar as novas gerações e que talvez já até sabíamos, mas andamos muito esquecidos. Pois só reagimos aos programas prontos e enlatados. Então estamos tentando deixar falar as mestras de drama e suas mocinhas aprendizes! Talvez até em nome da Educação Brasileira...

Na nossa trajetória de vida dedicamos mais de dez anos ao exercício profissional junto a Educação infantil seja como Pedagoga, Diretora e Supervisora de Creche, seja como Professora de educação infantil. Organizamos nossa Formação enquanto Educadora e fomos Agente da Formação de muitos educadores nos Estados do Ceará, São Paulo e Paraná em instituições privadas e públicas.

Tanto temos marcas fortes das imposições pedagógicas de Agentes das políticas de atendimento (Pedagogos, Assistentes Sociais e demais profissionais) obrigando-nos a desistir de nossas iniciativas próprias, a não recorrer aos nossos potenciais criativos e a desistir de nossa capacidade de inventar caminhos ainda não trilhados; como também sofremos dores ao criar Programas para Capacitação do Educador infantil (especialmente das Atendentes de desenvolvimento infantil de creches) por insistir em propostas de autonomia docente nas práticas pedagógicas destes Educadores infantis.

Queimaduras à parte, teimamos em brincar com fogo! Com as regras estabelecidas pelos superiores planos educacionais e de atendimento infantil e que clamam pela manutenção das coisas no estado geral em que se conservam; ou seja, colocando os Educadores infantis como simples executores de planos criados por autoridades pedagógicas maiores. Isso guardamos na memória de nossos anos de prática em instituições de educação infantil.

E podemos hoje declarar que o prazer de ver uma criança de 1 ano e oito meses andar, abandonando um longo período de hibernação nos berços de uma creche aonde levava dez horas diárias, só foi possível aos nossos olhos pelo simples fato de que a capacitação docente que oferecemos levava em conta a possibilidade deste educador infantil de reinventar-se e acreditar que era possível sonhar, criar, produzir e sorrir. Sorrir ao ver que o que parecia impossível se fez como resultado do seu trabalho: uma criança começou a andar. E o acreditar na possibilidade de um sonho fez uma criança aprender a andar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALLIGARIS, C. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo, Editora Ática, 1996, p. 206.

Chemama, Roland. Dicionário de Psicanálise (Larousse/Artes Médicas), Trad. Francisco Franke Settineri(APPOA), Artes Médicas, Porto Alegre, l995.

DOLTO, F. Os caminhos da educação. Tradução de Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 1998.

DOLTO, F. As etapas decisivas da infância. Tradução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

FREUD, S. Cinco lições de Psicanálise – Contribuições à psicologia do amor. Tradução de Durval Marcondes, Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 59.

FREUD, S. Além do princípio do prazer Tradução de Christiano Monteiro Oiticica, Rio de Janeiro, Imago, 1998

FREUD,S.(l9l4). Algumas reflexões sobre a Psicologia escolar. Edição Stardart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIII, Rio de Janeiro, Imago, l974

KISHIMOTO, T.M Jogos tradicionais infantis – o jogo, a criança e a educação. Rio de Janeiro, Vozes, 1993.

KLEIN, M. Psicanálise da Criança. São Paulo, Mestre Jou, 1969

LAJONQUIÈRE, L. de (1997) Dos erros e em especial daquele de renunciar à educação : notas de psicanálise e educação. . Estilos da Clínica, n-2, pp. 27 - 43.

LAJONQUIÈRE, L. de (1998) A Psicanálise, a Educação e a Escola de Bonneuil – A(Á) Lembrança de Maud Mannoni. Estilos da Clínica, n-4, pp. 65-79.

LAJONQUIÈRE, L. de Infância e Ilusão (Psico) pedagógica. Rio de Janeiro, Vozes, l999, p. 72.

NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1991, p. 85.

PEREIRA,M.R. O Avesso do modelo – Bons professores à luz da Psicanálise. Belo Horizonte, 1998, 133p. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de educação, UFMG.

PIAGET, J. A Formação do símbolo na criança. Tradução de Álvaro Cabral, Rio de Janeiro, LTC editora, 1990

ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil Brasil S.A, 1992,P.49.

SANTA ROZA, E. Quando brincar é dizer: a experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993

SANTA ROZA, E. & REIS, E. S. Da análise na infância ao infantil na análise. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1997

SOUZA, M. C. C. C de. À sombra do fracasso escolar: a psicologia e as práticas pedagógicas. Estilos da Clínica (IP – USP), n. 5, 1998,

TAVARES, E. E. O Brincar na clínica com crianças. Ato e Interpretação, Ano VIII, nº 14, APPOA, Março de 1998).

WINNICOTT, D.W Gesto Espontâneo. São Paulo, Martins Fontes, 1990

Publicado em 22/06/2004 10:14:00


Maria da Glória Feitosa Freitas - Pedagoga, Mestre em educação (Psicologia e Educação) pela FEUSP  e ex- Orientanda de Mestrado de Leandro de Lajonquière (USP), Doutoranda em Educação Brasileira na UFC, Professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú , durante anos trabalhou com educação Infantil em creches e Pré-escolas,há seis anos realiza pesquisas em Guriú (litoral do Ceará) sobre o brincar infantil e atualmente sobre os dramas cantados que voltaram a ser encenados depois de quinze anos desaparecidos. Membro do EDIPO - Grupo Interdisciplinar de estudos em Psicanálise.

Nenhum comentário:

Postar um comentário