"O melhor brinquedo é um bastão"
A simplicidade de um pedaço de madeira pode ser o melhor incentivo para a imaginação de uma criança
Howard Chudacoff, sociólogo americano autor do livro Crianças Brincando: Uma história americana, dedicou-se a pesquisar o hábito de brincar entre as crianças americanas desde o século XVI. Ele usou relatos de diários infantis, documentos históricos e fotos para contar a história de uma das atividades mais importantes da infância. No período estudado, Chudacoff, que é também professor da Universidade de Brown, notou que não só os brinquedos mudaram, mas o lugar onde as crianças brincam e até mesmo a participação dos pais nas brincadeiras. Em entrevista a ÉPOCA, o especialista analisa as mudanças e critica a intenção dos pais de controlar as brincadeiras. "O prazer real de uma criança é criar seu próprio jogo", diz. Ele também defende os brinquedos simples, como um simples bastão de madeira, no lugar dos industrializados e dos eletrônicos.
ÉPOCA - Por que você escolheu estudar esse tema? Qual é a importância das brincadeiras?
Howard Chudacoff – Porque é um tema muito importante da cultura e muito negligenciado. As brincadeiras nos dizem não só sobre as crianças, mas sobre nós mesmos. Todos fomos crianças um dia, todos temos memórias sobre as brincadeiras, temos idéias sobre como as crianças devem brincar e temos nossas idéias sobre liberdade. Mas, em muitas ocasiões, nós nos esquecemos disso e tentamos guiar e controlar o modo como as crianças brincam sem perceber que o prazer real de uma criança é criar seu próprio jogo.
ÉPOCA - Em seu livro, o senhor afirma que o conceito de infância só foi criado no século XIX. O que mudou para que houvesse essa nova fase da vida?
Chudacoff – Nos Estados Unidos e em outros países, a urbanização e a redução do papel das crianças na economia doméstica ajudaram a criar a infância como um período separado – especial e valorizado – da vida. Quando as crianças eram necessárias para a economia, trabalhando nos campos ou nas fábricas, era difícil vê-las como diferentes dos adultos. Quando algumas camadas das populações em alguns países começaram a enriquecer, as crianças deixaram de ser necessárias. Especialmente porque a mecanização e a industrialização, ao poupar mão-de-obra, começaram a retirar as crianças dos locais de trabalho. Foi nesse período que surgiu a escola como algo compulsório. Em muitas culturas, adultos não têm espaço para se divertir. Eles têm que ser obedientes a um Deus, obedientes a um mestre, têm que cuidar da família. Espera-se que eles cuidem de coisas sérias, apesar de que até mesmo os adultos tentam divertir-se à sua própria maneira. Mas ficou estabelecido que a infância é o período especial da vida, isolado, protegido dos perigos e das responsabilidades da idade adulta, um tempo não só para a educação, mas também para a diversão. A definição de brincadeira é difícil, mas, definitivamente, brincar é o oposto de trabalhar. Mas nós tentamos estruturar de tal forma as brincadeiras das crianças – não damos liberdade suficiente a elas –, que acabam virando uma espécie de trabalho quando não damos liberdade suficiente a elas.
ÉPOCA - O que mudou nas brincadeiras das crianças do século XVI para cá?
Chudacoff – O espaço para brincar é onde todas as alterações começam a acontecer. Com a industrialização, as crianças passaram a usar menos os espaços abertos e a natureza para brincar. Elas começam a ficar em lugares mais estruturados: em vez de ir para os campos ou as matas, elas ficam nas ruas ou dentro de casa. Não que não haja mais brincadeiras em espaços abertos, mas elas diminuíram muito. Hoje as crianças brincam mais em lugares construídos para elas, como escolas e playgrounds. Acho que uma das conseqüências dessa mudança é que as crianças são menos ativas em suas brincadeiras. Quando você está em um lugar externo, você caminha mais, corre mais e isso tem uma relação direta com o crescente problema do sobrepeso e da obesidade entre as crianças. A alimentação não é o único fator: as crianças e suas brincadeiras estão menos ativas.
ÉPOCA - O que mudou, no período em que o senhor estudou, com relação aos colegas de brincadeira?
Chudacoff – Hoje as crianças tendem a brincar mais sozinhas, com um jogo, um computador, um videogame ou mesmo assistindo à televisão. O número de colegas vem se reduzindo porque as crianças não brincam com os vizinhos, não correm pelas redondezas de casa. Elas brincam em pequenos grupos ou mesmo sozinhas. Com a diminuição da taxa de natalidade, as crianças tendem a ter menos irmãos e a ter, como colegas, as crianças de mesma idade, de suas classes na escola. Nos últimos 150 anos, pelo menos, as crianças, nos Estados Unidos, tiveram mais relações sociais com seus pares do que com a família. Não sei quantos amigos são necessários para entrar na vida em sociedade. Se cinco ou seis, se dois ou três. Mas certamente uma criança que brinca com um computador, sozinha, por várias horas por dia, vai ter um tipo diferente de personalidade do que o de alguém que interage com outras crianças. Porém, acho que tendemos a olhar mais para o lado negativo desses novos hábitos, que é mais evidente. Mas as crianças de hoje em dia, mesmo brincando com um computador, têm que usar sua imaginação, da mesma forma como seus antepassados. Elas não estão se tornando zumbis ou robôs.
ÉPOCA - O que mudou em relação aos brinquedos nesse período?
Chudacoff – Há duas épocas. Até o século o final do XIX, quando acontece a industrialização, os brinquedos eram objetos decorativos que tanto adultos quanto crianças poderiam ter. Mas as coisas com que as crianças brincavam eram improvisadas. Eles tinham bolas, bambolês e piões, mas era tudo muito mais improvisado. Eles usavam objetos de dentro de casa e mesmo da natureza: os vestidos da mãe, utensílios de cozinha, um tapete. Com a industrialização e o crescimento extraordinário da fabricação de brinquedos, as crianças ganharam uma nova e grande variedade de coisas para brincar – e comprar. Isso se mantém até o final do século XX, quando surgiram os brinquedos eletrônicos. Eles permitiram muitas oportunidades de brincar, mas também restringiram a liberdade da criança de improvisar. Isso porque os jogos eletrônicos não são flexíveis. Então você pode fazer coisas com uma bola, com um bastão ou com um bambolê que você não pode fazer com um jogo de computador. Você não pode criar as próprias regras, tem que seguir as que estão programadas.
ÉPOCA - O que o senhor acha da crescente presença da tecnologia nas brincadeiras das crianças?
Chudacoff – É realmente difícil de prever o que vai acontecer. Eu não sei tanto sobre os brinquedos de hoje, mas, certamente, os eletrônicos criaram mais caminhos para as crianças conhecerem o mundo do que havia 100, 200 anos atrás. Isso tem que ser destacado. E uma das tendências que está acontecendo nos Estados Unidos é o que eu chamo no livro de "age compression" (ou compressão da idade). As crianças hoje em dia podem ter os brinquedos dos mais velhos, os tocadores de música, os jogos de computador. E o mesmo acontece com os mais velhos: eles podem ter os brinquedos dos mais novos. Está havendo cada vez menos distinção entre os brinquedos e é quase como uma volta ao passado, quando os brinquedos eram para crianças e adultos.
ÉPOCA - As crianças de hoje em dia têm mais tempo livre para brincar do que as de antigamente?
Chudacoff – Tempo é liberdade quando se fala em brincar. E, nos Estados Unidos, os pais de todas as classes crianças estão tão preocupados em guiar e dar experiências enriquecedoras a seus filhos que acabam tomando conta do tempo de brincar. Se a família tiver dinheiro, eles comprarão tempo para as crianças em ligas de futebol, ou aulas de alguma coisa, como ginástica, além de colocá-las em um acampamento de férias. As famílias com menos dinheiro também tentarão comprar algumas dessas formas de brinquedo, mas tenderão a ter seus filhos ocupados com a televisão, o que é uma forma de prevenir que eles saiam de casa e façam algo perigoso. O tempo livre para brincadeiras tem sido reduzido.
ÉPOCA - Qual sua opinião sobre o conceito de "brinquedo educativo"?
Chudacoff – Os brinquedos sempre foram usados para a educação. Não importa se fossem blocos de
montar ou até mesmo a Bíblia, que pode ser usada no tempo livre e ensina uma lição. Nos Estados Unidos, antes de haver brinquedos produzidos em massa pelas indústrias, havia jogos para adultos e crianças que ensinavam história, geografia, matemática. Havia jogos de tabuleiro e de cartas. Mas o conceito de um "brinquedo educativo" nasceu no começo do século XX, quando foram criadas empresas exclusivamente para fazer brinquedos que melhorassem a inteligência das crianças. Acho que o uso desses brinquedos pode ter sido exagerado. Claro que a criança pode aprender o alfabeto ou a melhorar sua leitura com um brinquedo, mas se você der uma caixa com peças de várias formas, ela também vai aprender manipulando-as e imaginando situações com elas. Um jogo de computador também pode ser educativo, mesmo que trate de um programa de televisão. Isso porque a criança terá que aprender estratégia, terá que entender como jogar, quais são as opções. Ser educativo não está ligado ao brinquedo em si, mas à forma que a criança o usa, como ela brinca com ele.
ÉPOCA - Qual é o melhor brinquedo para uma criança, em sua opinião?
Chudacoff – O melhor brinquedo é um bastão. Pode ser chocante o que eu disse, mas, se você pensar, um bastão, uma bola ou uma caixa são o tipo de brinquedo com que todo mundo brinca. Você pode fazer tantas coisas com eles, pode usar sua imaginação e criar muito. Na maioria das vezes, as crianças enjoam dos brinquedos industrializados muito rápido.
ÉPOCA - E qual é o melhor lugar para brincar?
Chudacoff – Não é possível identificar um só lugar mas, de maneira geral, eu diria que é o lugar onde a criança se sente independente. Pode ser no próprio quarto, em um cômodo específico da casa, no jardim ou na floresta. Algum lugar em que a criança se sinta segura e independente.
ÉPOCA - Qual é o papel dos pais na brincadeira dos filhos?
Chudacoff – Acho que o papel dos pais é providenciar esse tipo de ambiente seguro e independente de brincadeira. Sem ser muito protetores. As crianças aprendem a cuidar de si mesmas e não se machucam com tanta freqüência quanto pensam os pais. O papel dos pais é guiar as crianças mas também permitir que as crianças assumam alguns riscos. Acho que para crianças muito novas, que não são capazes de ter seus próprios amigos, a presença dos pais nas brincadeiras é muito importante. Mas entre 6 e 12 anos, as crianças, antigamente, costumavam ficar mais sozinhas e isso era bom. Acho que atualmente os pais se sentem muito culpados quando não brincam com seus filhos, mas se esquecem de pensar que não necessariamente os filhos querem brincar com eles. Às vezes os filhos querem brincar sozinhos, criar o próprio jogo e construir uma certa autonomia.
ÉPOCA - De que forma a solidão pode ser boa para as crianças?
Chudacoff – A solidão pode ser triste, mas também pode ser inspiradora, criadora. Uma criança deitada na grama e olhando para as nuvens, tentando criar uma história a partir de suas formas, ou uma criança olhando para os próprios dedos e pensando o que é possível fazer com eles. Isso é solidão, mas é muito bom. Os pais pensam que seus filhos estão chateados. Mas se você pensar um minuto, não há razão para ficar chateado, mesmo estando sozinho e sem nada com que brincar.
ÉPOCA - Existem diferenças entre como as meninas e os meninos brincam?
Chudacoff – De maneira geral, em quase todas as épocas, os meninos brincam entre si e as meninas também. As meninas tendem a se apropriar dos ambientes e os meninos, a alterá-los. Os meninos são mais construtivos – e também destrutivos. Além disso, meninos são mais violentos. As meninas, historicamente, também vão menos longe de casa e têm mais responsabilidades domésticas. Isso mudou um pouco depois do movimento feminista, e as meninas passaram a imitar os meninos em suas brincadeiras, como por exemplo nos esportes. Mas, apesar de as diferenças terem diminuído, os fabricantes de brinquedo continuam fazendo e anunciando brinquedos diferentes para garotos e garotas.
ÉPOCA - As crianças de diferentes classes sociais brincam de forma diferente?
Chudacoff – As crianças de famílias ricas têm, historicamente, mais tempo livre para brincar. As crianças de famílias pobres têm que contribuir para a renda familiar, mas o que tentei mostrar em meu livro é que mesmo as crianças que trabalham incluem brincadeiras em suas tarefas. Jogos, competições. Nos últimos tempos, ficou mais claro também que, quanto mais rica a criança, mais brinquedos industrializados ela tem. Mas, por causa da industrialização e das mudanças econômicas dos Estados Unidos, a maior parte das crianças pobres também têm brinquedos. Não no mesmo número ou da mesma qualidade, mas ainda assim os têm. As diferenças de classe, nesse sentido, diminuíram nos últimos tempos.
ÉPOCA - O que o senhor acha dos lugares construídos para a diversão das crianças?
Chudacoff – Acho que são lugares usados somente pela conveniência ou em ocasiões especiais. Há lugares para festas de aniversário, por exemplo. Para mim, são artificiais. Embora sirvam a um propósito necessário, são artificiais. A qualidade da brincadeira é menor porque esses lugares servem aos propósitos dos adultos, que precisam deixar as crianças em um lugar seguro enquanto fazem compra, por exemplo. Além disso, nos Estados Unidos, esses lugares são preocupados demais com a segurança das crianças e há muitas regras para evitar que se machuquem – e que o estabelecimento não seja processado. Até mesmo as escolas estão restringindo a liberdade das crianças. Tenho duas sobrinhas, de 8 e 9 anos, em cujas escolas não é permitido, até os 10 anos, correr, pular ou jogar bola. Nos Estados Unidos, as escolas têm medo de serem processadas pelos pais caso haja algum acidente. Hoje, metade das escolas americanas aboliram o recreio durante as aulas. Às vezes, as crianças têm tempo livre, mas não podem usá-lo para fazer atividades físicas. É uma paranóia.
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